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De Maquiavel a Rousseau

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Words 13382
Pages 54
Marcelli Cipriani – 2010/1

Maquiavel (século XV – XVI)
A Itália da época de Maquiavel era um laboratório para a formação do principado novo, a melhor época possível para a ação do príncipe. “Pensando comigo mesmo se hoje na Itália correriam tempos propícios à glória de um novo príncipe, e ainda, se haveria matéria a ensejar que um homem prudente e virtuoso introduzisse um estilo que o dignificasse e que beneficiasse à coletividade dos homens desse país, pareceu-me que ora concorrem tantas coisas em favor de um príncipe novo que até nem sei que outra época ter-lheia sido mais propícia.” A Itália possuía um poder religioso forte, que exercia poder temporal (Vaticano). Ao mesmo tempo, a Igreja era desafiada por pensamentos e argumentos eminentemente laicos e políticos, não religiosos – como acontecia no resto da Europa, através da reforma protestante, por exemplo. Não há, na Itália da época, uma unidade política e isso implicava uma sociedade sem garantias. A sociedade era mercantil, rica, próspera e sofria grande influência do Renascimento. O príncipe era obrigado a governar em um mundo perigoso, onde o solo era muito frágil, e ao mesmo tempo tinha que garantir a segurança. Para isso, era necessária por parte do Príncipe a arte de iludir. O que importava era o resultado, e a história deveria ser usada como ferramenta – afinal, não há ciência capaz de orientar um Príncipe, há apenas os elementos do passado. A concepção que Maquiavel tem da política é parecida com a de Santo Agostinho quando fala da Cidade dos homens (Civitas Príncipes) – a política é a coerção. Ao mesmo tempo, há o rompimento com a visão de Santo Agostinho - que diz que a política também pressupõe a fé - e com a visão dos antigos – do Logus. Para Maquiavel, não existe regra ou pressuposto além de manter a ordem e coerção, evitando ao máximo o uso da violência. A política, para o autor, é ação civilizadora, pela introdução da ordem no caos – pois há a união das

sociedades com uma identidade, um Estado, uma linguagem e uma cultura. É quase como a visão platônica do rei filósofo que esculpe o bloco de barro conforme julga melhor. Por isso, a política é preciosa em si, porque com ela há a garantia de pelo menos uma segurança e uma ordem mínima. A preocupação de Maquiavel se dá com os principados que qualquer um poderia fundar, os que quebram com a base tradicional, em uma época que ignora a antiga do homem – diretamente relacionada à aristocracia e ao critério de nobre. Época de enriquecimento de burgueses, mercadores e aventureiros, o que concedia à população grande mobilidade social. É com esse principado, não tradicional e hereditário, não mantido pela religião e, principalmente não relacionado à utopia, que Maquiavel se preocupa. Por não ter essas garantias, o príncipe moderno é marcado pela instabilidade. Há uma necessidade perigosa de derrubar um Estado antigo para criar um novo, porém o príncipe novo possui maior legitimidade – pois não é sustentado por tradição, só por virtude. “De fato, um príncipe novo é muito mais atentamente observado em suas ações do que um príncipe hereditário, e quando estas são julgadas virtuosas, elas conquistam muito mais a simpatia dos homens e a sua afeição do que a antiguidade do sangue”. Maquiavel criticava o poder religioso, mas não pela religião em si – e sim porque a Igreja detinha o poder para unificar a Itália, mas não o fazia. Ele percebeu, à frente dos outros, que a forma de organização do Estado Nacional Moderno iria prevalecer, em uma época em que o modelo ainda estava em formação. Ele sabia que o sistema de cidades-estado, de fragmentação, estava fadado ao fracasso e às invasões – por isso julgava tão necessária a unificação da Itália. Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e São Tomás de Aquino, tendo como ponto de partida e de chegada a realidade concreta. Coloca ênfase na “verità effetuale”, a verdade efetiva das coisas – a fé no

realismo e a quebra com as utopias. A substituição do “dever ser” pelo “ser” faz com que Maquiavel centre sua análise em como pode ser instaurado um estado estável, como pode ser resolvido o ciclo inevitável de estabilidade e caos. Ao buscar resolver essa questão, faz uma ruptura com o saber repetido pelos séculos através de uma indagação radical que põe fim à idéia de uma ordem natural e eterna. Percebe que nada é estável e que, quando alcançada a ordem, ela não será definitiva, pois sempre há em germe o seu trabalho em negativo, ou seja, a ameaça de que ela seja desfeita. Maquiavel fala do poder como algo que só pode ser alcançado se suportarmos a incerteza, e se entendermos que, além da falta de estabilidade geral, o espaço da política é regido por mecanismos diferentes dos que norteiam a vida privada. Maquiavel estuda história e utiliza sua própria experiência, que o levam a concluir que em todos os tempos puderam ser observados traços imutáveis do comportamento humano – daí afirma que os homens são ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante o perigo e ávidos de lucro - e que o conflito e a anarquia são desdobramentos necessários dessas paixões e instintos malévolos. Por isso é mais seguro, para o Príncipe, ser temido a ser amado. O amor é mantido por um vínculo de obrigação, de segmento frágil, que é quebrado quando convém ao homem. Já o temor independe da vontade do indivíduo. O príncipe não pode ser odiado, mas para Maquiavel isso é fácil de garantir: ele só não pode atentar contra a família ou a propriedade do homem (principalmente a propriedade). Como o Príncipe não deve atentar contra a propriedade de seus súditos, para evitar o ódio dos mesmos, concluímos que ele não pode gastar uma fortuna, pois isso implicaria a cobrança de altos impostos. Além disso, o príncipe precisa de dinheiro para investir na defesa do Estado. O autor deixa claro que os atributos citados compõem a natureza humana, e conclui que, aquele que estudar o passado pode prever acontecimentos que irão se produzir em cada estado, tendo apenas que utilizar os mesmos meios vitoriosos já

empregados pelos estados antigos. A história seria um conjunto de pequenas histórias, a partir das quais temos que com os exemplos – imitando-os ou não. Ela é cíclica, já que não há meios absolutos de domesticar a natureza humana (o poder político aparece como a única forma de enfrentar o conflito, ainda que precária e transitória). Então, a ordem sucede à desordem que sucede a uma nova ordem. O que pode variar são os tempos de duração das formas de convívio entre os homens. À desordem proveniente da imutável natureza humana, Maquiavel acrescenta outro fator de instabilidade – a presença de duas forças opostas, uma dos grandes querendo dominar e oprimir o povo, a outra do povo de não desejar der dominado e oprimido. Se todos quisessem o domínio, a oposição seria resolvida pelos vitoriosos. Porém, os vitoriosos não sufocam definitivamente os vencidos, pois eles continuam não querendo o domínio. O problema político é encontrar uma maneira de impor uma correlação de forças,uma estabilidade das relações. Ele sugere duas alternativas à anarquia decorrente da natureza humana e do confronto entre os grupos sociais: o Principado e a República. Segundo ele, essa escolha não depende de um ato de vontade, e sim de uma situação concreta. Assim, quando a nação encontra-se ameaçada de deteriorização, quando a corrupção alastrou-se, é necessário um governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas. O príncipe não é um ditador, é mais propriamente um fundador do Estado, um agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição. Já quando a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder político cumpriu sua função “educadora” e regeneradora, e ela já está preparada para a República. Neste regime, que o autor às vezes chama de liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal de uma cidadania ativa e, portanto, são desejáveis.

A crença na predestinação dominava há muito tempo, e este era um dogma que Maquiavel queria enfrentar, pois a atividade política que ele arquitetou era uma prática do homem livre de freios extraterrenos. Esta prática exigia virtú, o domínio sobre a fortuna. Para os antigos, a Fortuna era uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja simpatia era importante atrair. Ela possuía bens como honra, riqueza, glória e poder. Para um homem ser favorecido pela Fortuna era necessário seduzi-la, e só conseguiria esse feito o aquele que se mostrasse vir, ou seja, verdadeiramente viril, inquestionavelmente corajoso. Assim, o homem que possuísse virtú no mais alto grau seria beneficiado com os presentes da cornucópia da Fortuna. Essa visão foi totalmente derrotada com o triunfo do cristianismo. A imagem da boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um “poder cego”, inabalável, fechado a qualquer influência e que distribui seus bens de forma indiscriminada. Nessa visão, os bens valorizados pelos antigos clássicos nada são. O poder, a honra, a riqueza e a glória não significam felicidade – que não se realiza no mundo terreno. O destino é uma força divina e o homem é impotente frente a ele. Maquiavel refere-se a esta crença fatalista de forma irônica, e acaba por montar um cenário em que a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto poder incontestável da fortuna. Não cabe na imagem feita por Maquiavel a idéia da virtude cristã, que prega uma bondade alcançada pela libertação das tentações terrenas à espera de recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra e a glória – típicas tentações mundanas – são bens perseguidos e valorizados. O homem de virtú pode consegui-los e por eles luta. Dessa forma, o poder que nasce na própria natureza humana e encontra seu fundamento na força é redefinido: se trata da utilização virtuosa da força. O governante não é, simplesmente, o mais forte - pois o forte pode conquistar o poder, mas não o mantém – mas principalmente o que demonstra virtú, que mantém o domínio adquirido, e se não amor, o respeito dos

governados (isso se aplica aos principados novos, pois em principados hereditários o Príncipe pode ser medíocre). Maquiavel sublinha que o poder se funda na força sim, mas é necessário virtú para mantê-lo, pois um governante virtuoso procurará criar instituições que “facilitem” o domínio. Por outro lado, sem virtú, sem boas leis, geradoras de boas instituições, e sem boas armas, um poder rival poderá impor-se. A medida política é, portanto, a manutenção da conquista. O homem de virtú deve atrair os favores da cornucópia (abundância, fertilidade) conseguindo fama, honra e glória para si e segurança para seus governados. A partir dessa ótica, a discussão sobre as qualidades necessárias ao príncipe ganha novo sentido. Ele deveria ser bom, honesto, cumpridor de suas promessas, conforme os mandamentos da virtude cristã? Maquiavel é incisivo: há vícios que são virtudes (e há virtudes que são vícios, como por exemplo o excesso de complacência). O autor defende a “boa crueldade”, uma crueldade empregada na hora certa e da maneira certa – que pode ser mais piedosa do que a clemência. O príncipe que deseja se manter no poder não pode temer “incorrer no opróbrio dos defeitos mencionados, se tal for indispensável para salvar o Estado”. Um príncipe sábio deve guiar-se pela necessidade, pois os ditames da moral convencional podem significar sua ruína. Assim, a qualidade exigida do príncipe que deseja manter-se no poder é, sobretudo, a sabedoria de agir conforme as circunstâncias – ou seja, o bom príncipe é aquele que sabe ser pragmático. Contudo, ele deve aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos governados, ou seja, o Príncipe deve ser um mestre em criar e alimentar ilusões populares – pois isso faz com que os indivíduos se sintam seguros. O jogo entre aparência e essência sobrepõe-se à distinção tradicional entre virtudes e vícios. A virtú política exige também os vícios, assim como exige o reenquadramento da força em virtuosa. O agir virtuoso é um agir como homem e como animal – resulta de uma astuciosa combinação entre a virilidade e a natureza animal. Quer como homem, quer como leão (para amedrontar os lobos), quer como raposa (para conhecer os lobos), o que conta é “o triunfo das dificuldades e a manutenção do Estado. Os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão”.

A política tem uma ética e uma lógica próprias, diferente da ética clássica, religiosa ou particular. Maquiavel abre um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional moralismo piedoso. A resistência à aceitação do radicalismo de suas proposições é, seguramente, o que dá origem ao “maquiavélico”. O mito, uma constante em sua obra, é falado para ser desmistificado. Maquiavel não o aceita como quer a tradição – algo naturalizado e eterno. O Príncipe - Trechos relevantes e comentários Nos estados hereditários e acostumados a ver reinar a família do seu príncipe, há dificuldades muito menores para mantê-los do que nos novos, porque basta conservar neles a ordem estabelecida por seus antepassados, e contemporizar com os acontecimentos. (ou seja, basta apenas que não seja abandonada a praxe de seus antecessores, pois esses principados são mantidos pela tradição). É no principado novo que estão as dificuldades. Os homens gostam de mudar de senhor, julgando melhorar, e esta crença os induz a pegar em armas contra quem os governa: crença ilusória, pois mais tarde a experiência lhe mostra que pioraram. Isto por sua vez deriva da natural necessidade de ofender aquele de quem nos tornamos príncipe novo, como homem d’armas e muitos outros vexames que a nova aquisição exige. Passamos, então, a ter por inimigos todos aqueles a quem prejudicamos ao ocupar o principado, e ao mesmo tempo não podemos conservar os que lá nos puseram como amigos, não podemos satisfazê-los como imaginaram, nem conseguimos tratá-los com dureza por estarmos gratos. Quem adquire territórios, desejando conservá-los, deve levar em consideração duas coisas: uma, que a estirpe do seu antigo príncipe desapareça; a outra, não alterar as suas leis, nem os seus impostos. Quando se adquirem Estados numa província de língua, costumes e instituições diversas, aí é que começam as dificuldades. Um dos melhores e mais eficazes meios de

tornar mais segura e duradoura a posse seria, em tal caso, ir o adquirente neles residir. É que estando no principado, vimos nascer as desordens e podemos prontamente curá-las. Além disso, a província neste caso não é o pasto da cobiça dos funcionários governamentais: os súditos ficam satisfeitos com poderem recorrer ao príncipe que está próximo a eles, e, por conseqüência, têm maior motivo para amá-lo, se desejam ser bons, e de receálo, se desejam ser outra coisa. Por outro lado, qualquer país estrangeiro que pretendesse atacar esse Estado passa a respeitá-lo mais. Outra forma de tornar mais segura a posse consiste em mandar colonizar algumas regiões que sejam como chaves do novo Estado. O príncipe manda os colonos para os lugares designados e aí os conserva, prejudicando somente aqueles de quem tira os campos para dar aos novos habitantes, que são uma partícula mínima do território conquistado. Os lesados, por ficarem dispersos e pobres, nunca poderão causar desembaraços. Todos os demais, por não terem motivos de queixa, se acalmam facilmente, e por outro lado, receosos de virem a sofrer o mesmo que aqueles, evitam suscitar as iras do novo senhor. Note-se que os homens devem ser lisonjeados ou suprimidos, pois se vingam das ofensas leves, mas não podem fazê-lo das graves. Então a ofensa que se faz ao homem deve ser tal, que o impossibilite de tirar desagravo. Se em lugar de colônias tivermos tropas no novo território, não só gastaremos mais, mas aumentaremos o número de prejudicados, dada a necessidade de alojarmos tão grande cópia de homens d’armas nas residências particulares. Os exércitos são tão inúteis, quanto úteis são as colônias. Havendo ainda dois meios de um simples cidadão chegar ao principado, para os quais não contribui inteiramente a fortuna ou a virtú, não me parece conveniente omiti-los. Esses meios são a prática de ações celeradas e nefandas ou o favor dos outros concidadãos (as ações celeradas e nefandas são os assassinatos, por exemplo. Nesse caso, o príncipe pode até assumir o poder, mas não assume a glória. Sendo assim, não devemos aplaudir o príncipe).

Crueldades proveitosas (se é lícito tecer elogios ao mal) pode-se chamar aquelas das quais faz-se uso uma única vez – por necessidade de segurança –, um uso no qual não mais se insiste e cujos efeitos revertem tanto quanto possível em favor dos súditos. Contraproducentes sao aquelas que, embora pouco profusas nos primeiros tempos, vão paulatinamente avolumando-se ao invés de minguarem. O mal deve ser feito de uma vez só, para que ofenda menos. Já os benefícios devem ser feitos pouco a pouco, para que sejam melhor saboreados. Vejamos o que ocorre quando um cidadão se torna príncipe de sua pátria com a ajuda de seus compatriotas. Podemos chamar o principado assim constituído de civil, e para alguém chegar a governá-lo não precisa ter ou exclusivamente virtù ou exclusivamente fortuna, mas, antes, uma astúcia afortunada. (A virtú é a virtude do príncipe, enquanto a fortuna é tudo o que está fora de seu alcance: a boa sorte, a resistência do mundo, as circunstâncias, as oportunidades, etc.). Em qualquer cidade se encontram estas duas forças contrárias, uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo. Destas tendências opostas surge nas cidades, ou o principado, ou a liberdade ou a anarquia. O principado surge da vontade do povo ou da dos grandes, conforme a oportunidade se apresente a uma ou outra dessas classes: os grandes, certos de não poderem resistir ao povo, começam a dar força a um de seus pares, o fazem príncipe, para, à sombra dele, terem ensejo de dar largas aos seus apetites; o povo, por sua vez, vendo que não pode fazer frente aos grandes, procede pela mesma forma em relação a um deles para que esse o proteja com a sua autoridade. Quem chega à condição de príncipe com o auxilio dos grandes conserva-a com maiores dificuldades do que quem chega com o auxílio do vulgo, porque está rodeado de muitos que se julgam da sua iguala, e aos quais, por isso, não podem manejar a seu talante. Aquele, porém,

que sobe ao poder com o favor popular não encontra em torno de si ninguém ou quase ninguém que não esteja disposto a obedecer-lhe. Demais, não se pode honestamente satisfazer os poderosos sem lesar os outros, mas pode-se fazer isso em relação aos pequenos; porque o intento dos pequenos é mais honesto que o dos grandes; enquanto estes desejam oprimir, aqueles não querem ser oprimidos. De uma plebe adversa, o máximo que um príncipe pode esperar é ser por ela abandonado. Dos magnatas, porém, deve recear não só o abandono, como também a revolta. É que eles, sendo mais perspicazes, ao pressentirem a tempestade, têm sempre tempo de se salvarem, lisonjeando aquele que julgam vir a triunfar. Temos de considerar os poderosos sob dois aspectos: ou procedem de forma que por suas ações ficam completamente ligados ao destino do príncipe, ou não. Os primeiros devemos honrar e amar. Quanto aos segundos, cumpre-nos distinguir: há os que assim procedem por pusilanimidade e defeito natural de ânimo, e neste caso devemos servir-nos dele (principalmente quando são bons conselheiros, para que nos queiram bem na prosperidade e não tenhamos de receá-los na adversidade); mas a também os que, não ligando o seu destino ao do príncipe, o fazem por cálculo e por ambição, sinal de que pensam mais em si do que nele. Contra estes, o príncipe que se acautele. Tema-os como se fossem inimigos declarados, porque no infortúnio sempre procuram causar-lhe a ruína. (Há a preocupação constante de enfraquecer os grandes, poderosos e magnatas. Assim, o Estado Moderno poderia governar seres politicamente iguais – ou pelo menos quase iguais – em submissão ao soberano. É a verticalização do poder, a diminuição da importância dos outros cargos e do poder dos outros homens. Todos devem estar abaixo do príncipe). Quem, portanto, se tornar príncipe com o favor do povo deve conserválo seu amigo; e isto não lhe será difícil, já que o povo só deseja estar livre da opressão. Mas quem chegar a essa altura com o bafejo dos poderosos, e contra

a vontade do povo, busque, antes de tudo, captar as simpatias deste, o que lhe será fácil quando o puser sob sua proteção. Os homens, quando recebem o bem de quem julgavam receber o mal, mais agradecidos se mostram ao benfeitor. Por isso, o príncipe que protege o seu povo torna-o mais afeiçoado a si do que se tivesse chegado ao poder com o favor dele. Em qualquer um desses Estados, um governo normalmente começa a vacilar quando da ordem civil passa à monarquia absoluta. O príncipe, exercendo a soberania de modo direto ou por meio de magistrados, encontrase em situação mais perigosa. Depende dos funcionários, os quais, sobretudo nos momentos de adversidade, podem facilmente retirar-lhe o poder, colocando-se contra ele ou desobedecendo-lhe. Um príncipe avisado fazer que os seus súditos tenham sempre necessidade do Estado e dele. Assim, nunca deixarão de lhe ser fiéis. Nos principados eclesiásticos, todas as dificuldades consistem em adquirir-lhes a posse – já que para isso é necessário virtude (virtú) ou boa sorte. Para conservá-los, porém, nem de uma nem de outra coisa se necessita. São sustentados pela rotina das religiões, instituições tão sólidas os sustentam que permitem ao príncipe manter-se no poder independentemente de como proceda ou viva. Os chefes destes principados são os únicos que tem Estados e não os defendem, que tem súditos e não os governam. Ainda que seus estados sejam indefesos, ninguém os tira, e os seus súditos, se livres da tutela governamental, não se preocupam com isso, nem buscam subtrair-se à soberania dos príncipes. (Esses Estados estão abaixo do político, pois são mantidos pela força e rotina da religião, e não pela virtude dos príncipes e qualidade de seus governos). Os principais alicerces de qualquer Estado consistem em boas leis e em bons exércitos. As tropas com que um príncipe defende seu Estado são ou próprias, ou mercenárias, ou auxiliares, ou mistas. As mercenárias e auxiliares

são inúteis e perigosas, e com essas tropas um príncipe só poderá evitar a própria ruína enquanto puder evitar um ataque contra si. Será pilhado por elas em tempos de paz, e pelo inimigo em tempos de guerra. Isso acontece porque essas tropas não têm outro motivo que as faça lutar a não ser um pequeno estipêndio, e ele não basta para incutir neles a vontade de morrer por quem os paga. Querem ser soldados de seu patrão quando ele não faz a guerra, mas quando ele faz, querem fugir ou desligar-se de seu compromisso. Sem possuir exércitos próprios nenhum principado viverá livre de ameaças – ou ficará completamente a mercê da sorte (fortuna), não havendo bravura (virtú) que o defenda lealmente na adversidade. (Maquiavel quer dizer que há enorme necessidade de o príncipe ter um exército nacional e eliminar os mercenários, que só lutam por dinheiro, e ninguém morre por dinheiro. Eles podem facilmente fugir em época de batalha e voltar-se contra o príncipe ou fazê-lo de prisioneiro em épocas de paz). Um príncipe não deve ter outro pensamento, ou cultivar outra arte que não seja a da guerra – juntamente com as regras e a disciplina que ela requer – porque só esta arte é esperada de quem manda, e ela é tão útil que, além de conservar no poder os príncipes de nascimento, freqüentemente eleva a tal altura simples cidadãos. O desprezo da arte da guerra determina a perda do Estado, como cultivá-la determina a ascensão. Entre como se vive e como se deveria viver há tanta diferença, que aquele que despreza o que se faz pelo que se deveria fazer aprende antes a trabalhar em prol da sua ruína do que da sua conservação. Na verdade, quem em um mundo cheio de perversos pretende seguir sempre pela bondade, caminha inevitavelmente para a própria perdição. Por isso um príncipe que deseja se conservar no poder tem de aprender os meios de não ser bom e a fazer uso deles ou não, conforme a necessidade. Todos iriam achar muito louvável que um príncipe tivesse apenas as boas qualidades. Não sendo isso possível, porque as condições humanas não permitem, o príncipe deve ser muito

cauteloso para saber furtar-se à vergonha das qualidades que lhe causariam a perda do Estado. Releva, outrossim, que não tema incorrer no opróbrio dos defeitos, se tal for indispensável para salvar o Estado. É que, ponderando bem, encontrará algo que parece virtude (virtú), mas que lhe causará a ruína, e algo que parece defeito ou vício, mas que o conduzirá à segurança e ao bem-estar. Existem dois modos de combater, com as leis ou com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais. A um príncipe, é necessário o saber se comportar como homem e como animal. Tendo necessidade de proceder como animal, o príncipe deve adotar a índole ao mesmo tempo do leão e da raposa – porque o leão não sabe fugir das armadilhas e a raposa não sabe se defender dos lobos. Assim, o príncipe deve ser raposa para conhecer as armadilhas, e leão para amedrontar os lobos. Um príncipe sábio não pode e nem deve manter suas promessas quando, extinta a causa que o levou a fazê-las, seu cumprimento o traz prejuízos. Esse preceito não seria bom se todos os homens fossem bons. Como, porém, os homens são maus e, por isso, faltariam à palavra que acaso nos dessem, nada nos impede de faltarmos com a nossa. Porém, o príncipe sempre deve ter razões legítimas para cobrir esse fato. Além disso, também é preciso que o príncipe saiba mascarar bem esta índole astuciosa, e saiba ser grande dissimulador. Os homens são tão simplórios e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar. Assim, não é preciso que o príncipe tenha todas as qualidades, mas é indispensável que pareça tê-las. Até direi que, se as possuir, o uso constante delas resultará em detrimento seu, e que, ao contrário, se não as possuir, mas parecer possuí-las, colherá benefícios. Daí a conveniência em parecer clemente, leal, humano, religioso, íntegro e, ainda de ter tudo isso, contanto que, em caso de necessidade, saiba tornar-se o inverso.

O que, acima de tudo, acarreta ódio ao príncipe, é que ele usurpe os patrimônios e as mulheres dos súditos. Como a maioria dos homens vive contente enquanto ninguém toca em seus bens ou em sua honra, o príncipe que se abstiver disso só terá de arrostar a ambição de poucos, e esta ele reprimirá facilmente. Jamais aconteceu que um príncipe novo desarmasse seus súditos. Pelo contrário, quando os encontrou desarmados, sempre os armou. Assim, tornava suas tais armas, conquistava a fidelidade dos suspeitos e convertia em partidários os que se mostravam submissos. Porém, sendo impossível armar todos os cidadãos, devemos favorecer os que armamos, para vivermos mais tranqüilos em relação aos outros. A diversidade de tratamento gera gratidão nos primeiros, sem concomitantemente nos deixar malquistos com os outros – que atribuirão essa diferença ao fato de que os que têm mais obrigações têm mais méritos, mas também correm maiores perigos. Se, ao invés, privarmos os cidadãos de suas armas, iremos os ofender, mostrando que não confiamos neles por os julgarmos ou covardes ou pouco leais, e isto fará com que eles sintam ódio por nós. Quando, porém, um príncipe adquire um Estado novo, que se vem agregar ao que já possuía antes, então deve desarmar os novos súditos, com exceção dos que o auxiliaram na conquista. E ainda com esses, deve, com o passar do tempo, enfraquecer-lhes o ânimo belicoso e reduzi-los à inércia, fazendo com que todas as armas fiquem no poder exclusivo dos seus próprios soldados, daqueles que serviam no antigo Estado. Um príncipe se faz estimado por grandes empresas e por suas ações raras e esplendidas. Também quando sabe ser verdadeiro amigo ou verdadeiro inimigo, isto é, quando abertamente se declara a favor ou contra alguém. Essa resolução é sempre mais vantajosa do que permanecer neutro. A prudência consiste em saber aceitar como bom o menos mau. É ainda, dever do príncipe, incutir nos súditos a idéia de que poderão exercer em paz seus respectivos ofícios, para não virem a abster-se, ou aformosearem suas propriedades com

medo que lhe as tirem, ou de estabelecerem qualquer gênero de comércio, temendo os impostos. O procedimento sábio do governante para com os indivíduos que inventem maneiras de multiplicar os recursos da cidade ou do Estado é de premiá-los. Além disso, o príncipe deve distrair o povo com festas durante certas épocas do ano e deve dar exemplos de bondade, embora sempre mantendo a majestade do seu cargo. A primeira opinião que formamos de um príncipe e da sua inteligência reflete-se na qualidade dos homens que o circundam. Se estes são capazes e fiéis, podemos considerar o príncipe sagaz, porque soube perceber suas capacidades e mantê-los fiéis a si. Quando não são, o fato de ele ter errado na escolha justifica plenamente que o tenhamos em má conta. Não ignoro ser crença antiga e atual de que a fortuna e Deus governam as coisas desse mundo, e de que nada pode contra isso a sabedoria dos homens (fatalismo de Maquiavel). Por conseqüência, seria razoável que não desperdiçássemos esforços, e nos deixássemos guiar pela sorte. Após refletir no assunto algumas vezes, me inclinei a concordar com essa opinião. Porém, para que não se anule nosso livre arbítrio, eu, admitindo embora que a fortuna seja dona da metade de nossas ações, creio que, ainda assim, ela nos deixa senhores da outra metade, ou cerca disso (ou seja, há a sorte, as circunstâncias e as oportunidades, porém os homens também são responsáveis por seu próprio destino). Comparo a fortuna com um daqueles rios, que quando se enfurecem inundam as planícies, derrubam árvores e casas, arrastam terra de um ponto para pô-la em outro: diante deles não há quem não fuja, quem não ceda ao seu ímpeto, sem meio algum de lhe obstar. Mas, apesar de isso ser inevitável, nada impediria que o homem, em épocas tranqüilas, construísse diques e canais, de modo que as águas, ao transbordarem do seu leito, corressem por estes canais ou, pelo menos, viessem com força atenuada, produzindo menores estragos. Fato análogo sucede com a fortuna, a qual demonstra todo o seu poderio quando não encontra ânimo (virtú) preparado para resistir-lhe e, portanto,

volve seus ímpetos para onde não foram feitos diques para contê-la (ou seja, a virtude do homem pode prevenir alguns acontecimentos da fortuna). Se observarmos a Itália, origem e teatro de tais mudanças, veremos ser ela uma campina sem diques e sem nenhuma proteção. Houvera sido ela protegida por valor (virtú) conveniente, como a Alemanha, a Espanha e a França, e essa enxurrada (a invasão estrangeira) ou não teria lhe trazido as grandes mudanças que trouxe ou nem sequer a teria alcançado. Creio que isto é o suficiente para mostrar, em tese, a possibilidade de nos opormos à fortuna. Como desejo, porém, ser mais minucioso, chamarei a atenção para o fato comum de um príncipe prosperar hoje e ruir amanhã, sem que a índole ou o proceder lhe hajam modificado. Em minha opinião, isso se deve às causas já esplanadas ao referir-se aos príncipes que se estribam totalmente na fortuna, os quais, disse eu então, caem quando esta varia. Creio ainda que será venturoso aquele cujo procedimento se adaptar à natureza dos tempos, e que, ao contrário, será desditoso aquele cujas ações estiverem em discordância com ela (ou seja, a maior qualidade do príncipe é a versatilidade, a adaptabilidade, o pragmatismo). Os homens prosperam quando a sua imutável maneira de proceder e as variações da fortuna se harmonizam, e caem quando ambas as coisas divergem. Julgo, todavia, que é preferível ser arrebatado a cauteloso, porque a fortuna é mulher e convém, se a queremos subjugar, batê-la e humilhá-la. A experiência ensina que ela se deixa mais facilmente vencer pelos impetuosos do que pelos frios. Como mulher que é, ama os jovens, porque são menos cautelosos, mais arrojados e sabem dominá-la com mais audácia. Tendo, então, considerado todas as coisas acima expostas, e pensando comigo mesmo se hoje na Itália correriam tempos propícios à glória de um novo príncipe, e ainda, se haveria matéria a ensejar que um homem prudente e virtuoso introduzisse um estilo que o dignificasse e que beneficiasse à coletividade dos homens desse país, pareceu-me que ora concorrem tantas

coisas em favor de um príncipe novo que até nem sei que outra época ter-lhe-ia sido mais propícia. Não se deve, portanto, deixar passar essa ocasião: a Itália, tanto tempo passado, há de ver, enfim, a chegada de seu redentor. Que a vossa ilustre casa assuma esta missão, com aquela coragem e com aquela esperança de que são tomadas as boas causas, a fim de que, sob seu estandarte, nossa pátria seja engrandecida, e a fim de que, sob os seus auspícios, se comprove este dito do Petrarca: Virtú contro a furore prenderà l’arme; e fia el combatter corto, num zás che l’antico valore nell’italici cor non è ancor morto. jaz.] (Maquiavel busca no patriotismo, alicerçado naquilo que a Itália já havia sido no passado, a grandeza que ela já teve.) Que o antigo valor No peito italiano inda não [Bravura contra o furor Tomará armas; o destruirá

Marcelli Cipriani - 2010/01

Thomas Hobbes
• Hobbes é um contratualista, ou seja, afirma que a origem do

Estado e da Sociedade está num contrato feito entre os homens, que antes de fazê-lo estariam em seu estado natural. O homem natural de Hobbes não é um selvagem, na verdade é o mesmo homem que vive em sociedade, ou melhor, a Natureza do homem é a mesma, não muda com o passar do tempo. • Hobbes defende que os homens possuem um equilíbrio de

capacidades. Por exemplo: dois homens decidem travar uma briga e um deles é muito mais forte do que o outro. Na visão de Hobbes isso não significa, porém, que ele irá sair vencedor, pois o mais fraco tem força suficiente para vencer o mais forte com suas capacidades mentais (através de alianças com outros homens, maquinações...). Ele afirma que os homens são tão iguais a ponto de que nenhum possa triunfar completamente sobre o outro. Porém, nenhum homem sabe o que pensa ou pretende o próximo, sendo, então, obrigado a supor sua atitude. Dessas suposições recíprocas, o mais razoável é o ataque mútuo – seja por proteção, seja para vencer. Dessa forma, a guerra se generaliza entre os homens, o que caracteriza o Estado Natural de Hobbes. Para ele, sem um Estado forte para repressão e controle, fazer a guerra é a coisa mais racional entre os homens. Então o significado da expressão “O homem é o lobo do homem” não estaria justificado em uma atitude anormal, e sim, na ação mais racional que o ser humano pode ter em seu Estado de Natureza. • Hobbes diz que na natureza do homem, encontramos três causas

principais de discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira leva o homem à violência buscando o lucro, a segunda a segurança, e a terceira a reputação. Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder que os mantenha em respeito, essas e outras causas o colocam em um estado de guerra

– e uma guerra é de todos os homens contra todos os homens – o que não consiste apenas na luta real, e sim na disposição para tal, quando não há garantia do contrário. É chocante a visão de guerra generalizada que Hobbes tem do homem em seu estado natural, que vai contra a visão Aristotélica de que o homem é um ser social que só desenvolve suas potencialidades dentro do estado. Para firmar sua opinião, frente aos desacreditados, Hobbes afirma que fechamos nossas portas ao dormirmos, trancamos nossos cofres mesmo dentro de casa e viajamos armados para nos protegermos – mesmo sabendo que há leis e funcionários públicos armados para proteger-nos, caso isso for necessário. Fazemos isso, pois sabemos que os homens possuem paixões e desejos que podem levar a ações extremas ou violentas. O autor afirma que isso não é um pecado, até o momento em que sejam criadas leis que impeçam essas ações. Dessa forma, Hobbes demonstra a importância de um Estado forte, pois as leis seriam necessárias para a proteção dos homens “lobos” em seu estado de guerra, e a criação de nenhuma lei é possível sem que seja determinada qual a pessoa que deverá criá-la. • Hobbes parte da expressão “lê-te a ti mesmo” para dizer como

deveria ser aquele que irá governar uma Nação. A expressão pretende ensinar que, a partir do autoconhecimento, podemos supor quais serão os pensamentos e paixões de todos os homens, pois as paixões (e não os objetos delas) são iguais para todos – desejo, medo, esperança. Para o autor o governante deveria ler, em si, todo o gênero humano. • O Direito de Natureza (Jus Naturale) é a liberdade que o homem

tem de usar seu próprio poder e fazer tudo o que desejar, a fim de preservar sua vida. Esse direito é um dos motivos de por que o estado de natureza hobbesiano é de guerra: se o homem sente-se ameaçado, mesmo que não o esteja efetivamente, não há ninguém para controlar suas ações. Se um indivíduo quer algo e outro também, no estado de natureza eles podem fazer o que quiserem para conquistar seu objetivo – sem restrições, pois essas seriam fixadas a partir

das leis. O indivíduo hobbesbiano não almeja tanto os bens, mas a honra. • O mais importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais

se inclui a riqueza (mais como meio de conquista, do que como fim em si). Por esse motivo, ele imagina ter um poder, ser respeitado ou ofendido pelos semelhantes. Da imaginação decorrem perigos, pois cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído. Uma lei de natureza é uma regra geral, estabelecida pela razão, que proíbe um homem de fazer tudo o que possa prejudicar sua vida, ou omitir aquilo que pense contribuir para preservá-la. Jus e Lex, o direito e a lei, respectivamente, são diferentes. O direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, enquanto a lei determina ou obriga uma dessas coisas. • Sendo claro que a condição do homem é uma condição de guerra

de todos contra todos, e que cada um pode utilizar o que quiser para preservar sua vida contra seus inimigos, forma-se a condição de que todo homem tem direito a todas as coisas – incluindo os corpos dos outros. Portando, perdurando esse Direito de Natureza não poderá haver para nenhum homem a segurança de viver em paz. Conseqüentemente, é um preceito geral da razão que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não consiga pode usar todas as vantagens da guerra. A primeira parte dessa lei encerra a lei fundamental do Estado de Natureza, pois visa buscar a paz. A segunda encerra a suma do Direito de Natureza, pois visa à defesa do homem por todos os meios possíveis. Desta lei fundamental da natureza derivase outra: que o homem concorde em abrir mão de seu direito a todas as coisas (quando outros homens também o façam, e na medida em que considere necessário para a paz e defesa de si mesmo) e se contente em ter com outros homens a mesma liberdade que eles terão consigo. Renunciar seu direito a alguma coisa é o mesmo de privar-se da liberdade de negar ao outro o direito dele à mesma coisa. Ou seja, quem renuncia seu direito não dá a outro homem nada que ele já não tivesse – porque todos os homens têm direito a tudo por

natureza – mas apenas se afasta do caminho do outro para que ele goze de seu direito original com um obstáculo a menos (pois ainda pode haver obstáculos por parte de outros homens). Portanto a conseqüência para um homem da desistência de outro a seu direito é simplesmente uma diminuição dos impedimentos para a execução de seu próprio direito original. • Apesar da existência das leis da natureza (como a justiça a

modéstia, ou seja, fazer aos outros o que queremos que nos façam), que cada um respeita quando tem vontade, sem um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, legitimamente, apenas em sua força e capacidade. Pactos sem espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. A única forma de instituir um poder comum, capaz de defender os homens de invasões estrangeiras e das injúrias uns dos outros é conferir toda a sua força e o seu poder a um homem ou a uma assembléia de homens – representante de suas pessoas, reconhecendo todos os homens como autores de qualquer ato que o representante executar, em tudo que disser respeito á paz e segurança comum – que terá a si submetida às vontades e decisões de todos outros homens. É uma verdadeira unidade de todos os homens em um só, realizado por um pacto de um homem com todos os outros, que diz que o indivíduo cede e transfere seu direito de se governar a um homem, desde que todos os outros façam o mesmo. Feito isso, a multidão unida em uma pessoa só se chama Estado. É essa a geração do Leviatã, um Deus Mortal ao qual os indivíduos (abaixo do Deus Imortal) devem sua paz e defesa. É nele que consiste a essência do estado, que pode ser definida como uma pessoa que pode usar a força e o recurso de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum, e que foi instituída mediante pactos recíprocos de uma grande multidão, uns com os outros. • Não existe primeiro a sociedade e depois o poder (o “Estado”).

Porque se há governo, é justamente para que os homens possam conviver em paz. Por isso o poder do governante tem que ser ilimitado, caso contrário seria

necessário outra pessoa para julgar obrigações e ações do governante (podendo julgar se o príncipe continua príncipe ou não) e, portanto, seria essa pessoa quem julga a autoridade suprema. Para montar o poder absoluto, Hobbes concebe um contrato diferente, sui generis (peculiar). O soberano não assina o contrato – o pacto é feito apenas pelos que vão se tornar súditos – por uma razão simples: no momento do contrato não existe ainda um soberano, pois ele só surge devido ao contrato. Como resultado ele se conserva fora dos compromissos e isento das obrigações. • Na medida em que os homens pactuaram, não estavam obrigados

(por outro pacto) a contradizer qualquer coisa do “atual”. Dessa forma, aqueles que já instituíram um Estado não podem fazer um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, sem sua licença. Portanto, os que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão desunida. A dissensão de alguém levaria todos os restantes a romper o pacto feito com esse alguém – o que constitui injustiça. Por outro lado, cada homem conferiu a soberania para aquele que é portador de sua pessoa, portanto se o depuserem estarão tirando-lhe o que é seu – o que também constitui injustiça. Além do mais, aquele que for morto ou castigado por tentar depor seu soberano, será autor de seu próprio castigo, pois por instituição o indivíduo é autor de tudo o que o soberano fizer. • Dado que o direito de representar todos é conferido ao que é

tornado soberano mediante um pacto entre cada um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto por parte do soberano (já que ele nunca pactuou), portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição sob qualquer pretexto de infração. Caso o soberano tivesse feito um pacto anterior, e alguém dissesse que ele cometeu uma infração do pacto, enquanto outros dissessem que não, não haveria juiz capaz de decidir a controvérsia. Voltaria, portanto a ser a força a decidir, e cada um recuperaria o direito de se defender por seus próprios meios, contrariamente à intenção inicial

do pacto. Portanto, seria inútil conferir a soberania através de um pacto anterior. No momento da escolha do soberano, os que discordaram da maioria devem passar a consentir com eles. • Dado que todo o súdito é autor de todos os atos do soberano,

segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com seus súditos e nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Quem faz algo em virtude da autoridade de outro não pode causar injúria a aquele em virtude de cuja autoridade está agindo. E como cada indivíduo é autor de tudo o que o soberano fizer, quem se queixar de uma injúria feita por seu soberano estará se queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto só pode acusar a si próprio; e não pode acusar a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os detentores do poder soberano podem cometer iniqüidades, mas não podem cometer injustiça nem injúria em sentido próprio. Em conseqüência, o que detém o poder soberano não pode justamente ser morto nem punido por seus súditos, dado que cada súdito é autor dos atos do soberano, então cada um estaria castigando outra pessoa pelos atos cometidos por si mesmo. • Nesse Estado em que o poder é absoluto, Hobbes desmonta o valor

retórico que atribuímos a palavras capazes de geral tanto entusiasmo - como liberdade e igualdade -e diz que também são capazes de causar muita ambição, descontentamento e guerra. A igualdade é o fator que leva à guerra de todos. Dizendo que os homens são iguais, Hobbes simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, gerando tensa competição. E a liberdade, para Hobbes, significa (em sentido próprio) a ausência de oposição (ou ausência de impedimentos externos do movimento). • Já quando o que impede o movimento faz parte constituição da

própria coisa, não poderíamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se mover; como quando uma pedra está parada. Conforme este

significado próprio, um homem livre é aquele que, nas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer. Hobbes reduz a liberdade a uma determinação física, aplicável a qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor (a seu ver retórico) da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e morrem. A liberdade seria direito apenas do estado, pois se os homens quisessem a liberdade, poderiam fomentar tumultos e tentar controlar seu soberano, o que derramaria muito sangue e poderia levar os homens de volta ao seu Estado de Natureza. Resta, porém, uma liberdade ao homem. Quando o indivíduo firmou o contrato social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu que, como todos tinham esse direito como ele, o resultado final só poderia ser a guerra. Mas, dando poderes ao soberano, o homem só abriu mão de seu Direito Natural para proteger sua própria vida. Portanto, se esse fim não for atendido pelo soberano , o súdito não lhe deve mais obediência – não porque o soberano violou algum compromisso (isso seria impossível, pois o soberano não pactuou ou prometeu nada), mas simplesmente porque a razão que levava o súdito a obedecer desapareceu (mas só o indivíduo que não teve sua vida protegida pode deixar de servir ao súdito, pois qualquer aliado que ele visar ter, ainda está sendo protegido pelo soberano). Essa é a verdadeira liberdade do homem. Todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto. Se um soberano mandar alguém se matar esse alguém tem a liberdade de desobedecer. • Se alguém for interrogado pelo soberano relativamente a um crime

que cometeu, não é obrigado a confessá-lo (a não ser que receba garantia de perdão), porque ninguém pode ser obrigado por um pacto a recusar-se a si próprio. Por outro lado, o poder consentido por um súdito a um soberano está contido nas palavras “eu autorizo, eu assumo como minhas todas as suas ações”, nas quais não há restrição a sua liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me

mate não fico obrigado a matar-me quando ele me ordena. Uma coisa é dizer “mata-me se te aprouver”, e outra coisa é dizer “matar-me-ei”. Portanto, ninguém fica obrigado por suas palavras a matar a si mesmo ou a outrem. Porém, se o soberano ordenar que o indivíduo participe de uma missão desonrosa ou perigosa, e a nossa recusa prejudicar o fim a que foi criada a soberania, não temos o direito de recusar. Caso contrário, temos esse direito. • Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa

de outrem. Porque essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo, portanto, destrutiva da própria essência do Estado. Quanto às outras liberdades, dependem do silêncio da lei. Nos casos em que o soberano não tenha estabelecido uma regra, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir. O que desfaz a sujeição política é quando o governante não confia mais no súdito e, prendendo-o com ferros liberta-o das obrigações jurídicas que assumiu com ele. • No Estado absoluto de Hobbes, o indivíduo conserva um direito à

vida talvez sem paralelo em nenhuma outra teoria política moderna. Mas esse estado hobbesiano continua marcado pelo medo. O soberano governa pelo temor que inflige a seus súditos. Porque, sem medo, ninguém abriria mão de toda a liberdade que tem naturalmente; se não temesse a morte violenta, nenhum homem renunciaria o direito que possui, por natureza, a todos os bens e corpos. Porém, o medo que há no Estado hobbesiano deve ser matizado, graduado. Primeiro, o Leviatã não aterroriza. Terror existe no Estado de Natureza, quando vivo no pavor de meu suposto amigo que me mata. Já o poder soberano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhecem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer na ira do governante. O indivíduo bem comportado não terá problemas com o soberano. • O que mais impulsiona o soberano governante não é qualquer

prazer ou vantagem que espere recolher do prejuízo ou debilitamento causado a

seus súditos, e sim a obstinação daqueles que, contribuindo de má vontade para sua própria defesa, tornam necessário que seu governante deles arranque tudo o que pode em tempo de paz, a fim de obter meios de resistir ou vencer seus inimigos em qualquer emergência ou súbita necessidade. Porque todos os homens são dotados de grandes lentes de aumento (ou seja, suas paixões e desejos), através das quais todo o pequeno pagamento aparece como um grande fardo; mas não possuem aquelas lentes prospectivas (a ciência moral e civil) que permitem ver de longe as misérias que os ameaçam, e que sem tais pagamentos não podem ser evitadas. • Um súdito tem o direito de excluir todos os outros súditos do uso

de sua terra, mas não o soberano. Dado que o soberano quer dizer o Estado, se entende que nada faz que não seja em vista da paz e segurança comuns, então essa distribuição das terras deve ser entendida como realizada em vista do mesmo. • Compete ao soberano a distribuição das terras, assim como a

decisão sobre em que lugares e com que mercadorias, os súditos estão autorizados a manter tráfico com o estrangeiros. Porque se as pessoas pudessem tomar tal decisão, algumas delas seriam levadas pela ânsia do lucro, tanto a fornecer ao inimigo os meios para prejudicar o Estado, quanto a prejudicá-lo elas mesmas. • Além do mais , dado que não é suficiente para o sustento do

Estado que cada indivíduo tenha a propriedade de uma porção de terra, ou a propriedade natural de alguma arte útil, é necessário que os homens distribuam o que são capazes de poupar, transferindo essa propriedade mutuamente uns aos outros, através da troca e de contratos mútuos. Compete portanto ao Estado, isto é, ao soberano, determinar de que maneira devem fazer-se entre os súditos (moeda, troca...) todas as espécies de contrato, e mediante que palavras e sinais esses contratos devem ser considerados válidos.



Então entendemos por que Hobbes, em sua época, era considerado

quase um “maldito”, maquiavélico como Maquiavel. Não é só porque apresenta o Estado como monstruoso e o homem como belicoso - rompendo com a confortável imagem Aristotélica do bom governante (comparado a um pai), e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião ao poder político. É, também, porque nega ao indivíduo um direito natural e sagrado à sua propriedade. No tempo de Hobbes, o modelo para a ciência estava nas matemáticas, que não dependem em nada da observação empírica para serem verdadeiros. Quando dependemos da experiência, estamos sempre sujeitos ao engano. Mas, se nos limitamos a deduzir propriedade de figuras ideais não há risco de erro. E isso, antes de mais nada, porque as figuras geométricas não resultam da observação (não existe, na natureza, círculo ou triângulo perfeito), mas são criações da nossa mente. Em suma: só podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo que nós mesmos engendramos. Assim entendemos o papel do contrato. • Na matemática, podemos conhecer porque as figuras foram

concebidas, feitas por nós. Da mesma forma na ciência política: se existe Estado, é porque o homem o criou. Se houvesse sociabilidade natural, jamais poderíamos ter ciência dela, pois dependeríamos dos equívocos da observação. Mas, como só vivemos em sociedade devido ao contrato, somos nós os autores da sociedade e do Estado, e podemos conhecê-lo tão bem quanto às figuras da geometria. De uma vez só, o contrato produz dois resultados importantes. Primeiro, o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza. Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os meios de alcançar a paz e a prosperidade.

Marcelli Cipriani - 2010/01

John Locke
Além de defensor da liberdade e da tolerância religiosa, John Locke é considerado o fundador do empirismo (todo o conhecimento deriva da experiência, da observação do mundo, e não da fé). Formulou a teoria da tábula rasa do conhecimento, onde afirma que todo o nosso conhecimento está fundado na experiência, e da experiência deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. A teoria da tábula rasa é, portanto, uma crítica à doutrina das idéias inatas, feita por Platão e retomada por Descartes, segundo a qual, determinadas idéias, princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência. Locke escreveu dois tratados. O segundo, o mais importante, é um ensaio sobre a origem, objetivo e extensão do governo civil. Nele Locke sustenta a tese de que nem a tradição nem a força, mas o consentimento dos governados é a única fonte do poder político legítimo. Locke é um dos principais representantes do jus naturalismo, ou teoria dos direitos naturais. A teoria de Locke, em suas linhas gerais, é semelhante à de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Porém, o estado de natureza de Locke difere do estado de guerra hobbesiano, pois ser um estado de relativa paz e harmonia. Nesse estado, os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano. Para Locke, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, um direito do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu

trabalho. Como as terras eram, naturalmente, de todos (dadas por Deus), ao incorporar seu trabalho à matéria bruta (como a terra) que se encontrava em estado natural, o homem tornava-a sua propriedade privada. O trabalho era, então, na concepção de Locke, o fundador originário da propriedade. Se o trabalho instituía a propriedade, ele também impunha limitações à propriedade. Inicialmente, o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação. O uso da moeda levou à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens – esse foi o processo que marcou, para Locke, a passagem da propriedade limitada (baseada no trabalho), para a propriedade ilimitada (baseada na acumulação possibilitada pelos capitais). O estado natural relativamente pacífico, não está livre de inconvenientes que, sem uma lei para definí-los, um poder para julgá-los e uma força coercitiva para garantir a aplicação de uma sentença, coloca os indivíduos em estado de guerra uns contra os outros. É a necessidade de superar esses inconvenientes que leva os homens, segundo Locke, a firmar livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, judicatura e da força concentrada na comunidade. Seu objetivo precípuo é a preservação da sociedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras. Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento, em que os homens concordam livremente, para preservar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e às lei, estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário. É necessário o consentimento unânime dos indivíduos para a entrada no estado civil. Porém, no momento em que for feita a escolha para determinar a forma de governo, a unanimidade do contrato cede lugar ao princípio da maioria. Na

concepção de Locke, porém, não importa qual seja a sua forma, “todo governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade”. Cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke denomina de poder supremo. Em suma: o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controla do governo pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamento do estado civil. Quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerado em tirania (exército do poder para além do direito, visando o interesse próprio e não o bem público e comum). A violação deliberada e sistemática da propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania. O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, onde o impasse só pode ser decidido pela força. Segundo Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exército ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do governo rebelde. Conclusão: Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e aos bens, constituem para Locke o cerne do estado civil, e por isso ele é considerado o “pai do individualismo liberal”. Através dos princípios de um direito natural e preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao legislativo, de um poder limitado, de

direito de resistência, ele expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal. Marcelli Cipriani - 2010/01

Rousseau
“O restabelecimento das ciências e da arte teriam contribuído para aprimorar os costumes”? Para Rousseau não. “Se nossas ciências são inúteis no objetivo que se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem”. A crítica às ciências e às artes, porém, não significa uma recusa ao que seria a verdadeira ciência. Se Rousseau não concorda com o ideal da difusão do saber, ao invocar o ideal do sábio, sua exigência é maior ainda, porque é acompanhada de uma forte conotação moral. A ciência que se pratica mais por orgulho, pela reputação ou busca da glória do que pelo verdadeiro amor ao saber não passa de uma caricatura da ciência e sua divulgação por autores de segunda categoria só pode contribuir para piorar muito mais as coisas. A verdadeira filosofia é a virtude e para conhecer suas leis “basta voltarse para si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões”. Uma vez, porém que já quase não se encontram homens virtuosos, mas apenas alguns menos corrompidos do que outros, as ciência e as artes, embora tenham contribuído para a corrupção dos costumes, poderão, no entanto, desempenhar o papel de impedir que a corrupção seja maior ainda. “As artes e as ciências, depois de terem feito os vícios brotarem, são necessárias para impedir que se tornem crimes. Destroem a virtude, mas preservam o seu simulacro público; em seu lugar introduzem a polidez e a decência, e substituem o temor de parecer mau pelo de parecer ridículo”. Não se trata, portanto, de acabar com as academias, as universidades, as bibliotecas, os espetáculos. As ciências e as artes podem muito bem distrair a maldade dos homens e impedí-los de cometer crimes hediondos. Em lugar de pregar às pessoas, deve-se distraí-las. “É essencial hoje servir-se das artes e

ciências como de um remédio para o mal que causaram”. Rousseau inovou a forma de se pensar a política, principalmente ao propor o exercício da soberania pelo povo, como condição primeira para a sua libertação. “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se aprisionado. Aquele que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como ocorreu essa transformação? O que poderá legitimá-la? Creio poder resolver essa questão”. No Discurso sobre a origem da desigualdade o objetivo de Rousseau é de construir a história hipotética da humanidade, deixando de lado os fatos. “Pois eles não dizem respeito à questão. Não se devem considerar as pesquisas em que se pode entrar nesse assunto como verdades históricas, mas como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem”. Ao declarar que ignora o processo de transformação do homem, da liberdade à servidão, Rousseau se refere aos fatos reais, que seriam muito difíceis de serem verificados, pois os vestígios deixados pelos homens são insuficientes para que se tenha uma idéia precisa de toda a sua história. Esta, porém, pode ser construída hipoteticamente e demonstrada através de argumentos racionais. “Unano-mos para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence, instituamos regulamentos de justiça e paz, aos quais todos sejam obrigados a conformarse, que não abram exceções para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Numa palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna”. “Fora preciso muito menos do que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de

seduzir, todos correram ao encontro de seus grilhões, crendo assegurar sua liberdade. Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão à miséria”. É a partir do reconhecimento dessa situação que Rousseau inicia o Contrato Social, afirmando que “o homem nasce livre e em toda parte encontra-se a ferros”, mas, agora não se trata mais de reconstruir hipoteticamente a história da humanidade, mas de apresentar o dever-ser de toda ação política. Quando Rousseau se pergunta como ocorreu a mudança da liberdade para a servidão e responde imediatamente que não sabe, mas que pode resolver o problema da sua legitimidade, é preciso entender que não é o caso de legitimar a servidão, pois isso ele denuncia. O que pretende estabelecer no Contrato Social são as condições de possibilidade de um pacto legítimo, através do qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem em troca liberdade civil. No processo de legitimação do pacto social, o fundamental é a condição da igualdade das partes contratantes. “As cláusulas do contrato, quando bem compreendidas, reduzem-se a uma só: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por tornar onerosa para os demais”. A situação é bem diferente do que a descrita no Discurso sobre a Origem da Desigualdade. Agora, ninguém sai prejudicado, porque o corpo soberano que surge após o contrato é o único a determinar o modo de funcionamento da máquina política, chegando a poder determinar até a forma de distribuição da propriedade, já que a alienação da propriedade de cada parte contratante foi

total e ser reservas. Desta vez, estariam dadas todas as condições para a liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte ativa e passiva, ou seja, agente do processo de elaboração das leis e aquele que obedece a essas mesmas leis, tem todas as razões para se constituir enquanto um ser autônomo, agindo por si mesmo. Nessas condições haveria uma conjugação perfeita entre a liberdade e a obediência. Obedecer à lei que se prescreve a si mesmo é um ato de liberdade (fórmula que seria desenvolvida mais tarde por Kant). Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos. Para que o corpo político se desenvolva, não basta o ato de vontade fundador da associação, é preciso que essa vontade se realize. Os fins da constituição da comunidade política precisam ser realizados. Daí surge a necessidade de se criarem os mecanismos adequados para a realização desses fins. Essa tarefa cabe ao corpo administrativo do Estado. Para Rousseau, antes de mais nada, impõem-se definir o governo, o corpo administrativo do Estado, como funcionário do soberano, como órgão limitado pelo poder do povo e não como um corpo autônomo ou como o próprio poder máximo, confundindo-se com o soberano. Nesse sentido, dentro do esquema de Rousseau, as formas clássicas de governo, a monarquia, a aristocracia e a democracia, teriam um papel secundário dentro do Estado e poderiam variar, ou combinar-se de acordo com as características do país (extensão do território, costumes do povo, sua tradição...). Mesmo sob um regime monárquico, segundo Rousseau, o povo pode manter-se como soberano, desde que o monarca se caracterize como funcionário do povo. Depois de frisar o caráter do governo como um corpo submisso à

autoridade soberana, depois de reconhecer sua necessidade, passa a enumerar os riscos da sua instituição, sua tendência a degenerar. “Assim como a vontade particular age sem cessar contra a vontade geral, o governo despende um esforço contínuo contra o soberano”. O governo tende a ocupar o lugar do soberano, a constituir-se não como um corpo submisso, como um funcionário, mas como o poder máximo, invertendo os papéis. Ao invés de submeter-se ao povo, o governo tende a subjugá-lo. Para permanecer coerente com seus princípios, sempre na exigência de legitimidade da ação política, Rousseau não admite a representação ao nível da soberania. Uma vontade não se representa. “No momento em que um povo se dá representantes, não é mais livre, não mais existe”. O exercício da vontade geral através de representantes significa uma sobreposição de vontades. Ninguém pode querer por outro. Quando isto ocorre, a vontade de quem a delegou não mais está sendo levada em consideração. Portanto a soberania é inalienável. Mas Rousseau reconheceria a necessidade de representantes em nível de governo, e se ao executivo já era necessária uma grande vigilância por sua tendência a agir contra a autoridade soberana, não se deve descuidar dos representantes, que tender a agir mais por seus próprios interesses do que por aqueles que representam. Para não se perpetuarem em suas funções, seria conveniente que fossem trocados com certa freqüência. Concluindo, a considerarmos os próprios textos de Rousseau, deparamonos com certa incredulidade quanto à recuperação da liberdade por povos que já a perderam completamente. Sua visão da história é pessimista. Quando chamado para atuar na política concreta, Rousseau será bastante moderado e usará sempre a máxima que já havia enunciado no Contrato Social: a primeira tarefa do legislador é conhecer muito bem o povo para o qual irá redigir as leis. Não existe uma ação política boa em si mesma em termos absolutos. Cada situação exige um tratamento especial. A ação política será mesmo comparada à ação do médico diante do paciente. Seu papel é prolongar a vida ao máximo,

mas não poderá impedir que o corpo morra, uma vez que tiver completado seu ciclo vital. Fazer com que um povo, da servidão recupere a liberdade, é o mesmo que recuperar a vida de um doente prestes a morrer. Tal façanha, evidentemente, não ocorre todos os dias, mas só mesmo por um milagre. Uma reviravolta desse porte só acontece uma vez na vida de um povo. Como foi o exemplo da revolução Francesa de 1789, que empunhou o Contrato Social como uma espécie de manual da ação política e elegeu seu autor como o primeiro revolucionário.

Marcelli Cipriani - 2010/01

Montesquieu
Para Montesquieu, a moderação é a peça chave para o funcionamento estável dos governos. Definindo lei como “relações necessárias que derivam da natureza das coisas” estabelece uma ponte com as ciências empíricas e a física newtoniana e, com isso, rompe com a tradicional submissão da política à teologia. Essa definição não cai em um determinismo natural e conservador, pois Montesquieu está dizendo que é possível encontrar uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar o homem, assim como é possível encontrá-las nas relações entre os corpos físicos. Por exemplo, tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos físicos a partir das relações entre massa e movimento, também os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza das coisas. Mas aqui se trata de massa e movimento de outra ordem, próprios da política, que poderiam corresponder a quem exerce o poder e como ele é exercido. São esses a natureza e princípio de governo, bases da tipologia de Montesquieu. Montesquieu estabelece uma regra essencial que incorpora a teoria política ao campo das ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações políticas. As leis que regem as instituições políticas são relações entre as diversas classes, formas de organização econômica e distribuição do poder em que se divide a população. Mas o objetivo de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os homens em geral, mas as leis positivas, ou seja, as leis e instituições criadas pelos homens para reger as relações entre os homens. O objeto de Montesquieu é o espírito das leis, isto é, as relações entre as leis positivas e diversas outras coisas – tal como o clima, as dimensões do Estado, a

organização do comércio e as relações entre as classes. Fundamentalmente preocupado com a estabilidade dos governos, Montesquieu retoma a problemática de Maquiavel, que discute essencialmente as condições para a manutenção do poder. Montesquieu constata que o estado de sociedade comporta uma variedade imensa de realização, que funcional bem ou mal a uma diversidade de povos e seus costumes próprios. Essa variedade não se aplica pela natureza do poder. O que deve ser investigado, portanto, não é a existência de instituições propriamente políticas, e sim a maneira como elas funcionam. Assim, ele considera duas dimensões do poder político das instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza do governo diz respeito a quem detém o poder e às relações entre as suas instâncias e a forma como se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e classes. O princípio de governo é a paixão que o move, é o modo de funcionamento, ou seja, como o poder é exercido. São três os princípios: o da monarquia é a honra - o respeito por cada um daquilo que deve para a sua categoria, ou seja, uma honra falsa -, o da república é a virtude - política, não moral, do respeito às leis e do compromisso com a coletividade, conceito influenciado pela filosofia de Aristóteles - e o do despotismo é o medo da arbitrariedade do déspota e de uns pelos outros. O medo é a única paixão propriamente dita entre os princípios, razão porque o regime do despotismo ocorre no limiar da política – seria menos que um regime político, quase uma extensão do estado de natureza. A honra é uma paixão social, um sentimento de classe, a paixão pela desigualdade, o amor aos privilégios e prerrogativas que caracterizam a nobreza. O governo de um só, baseado em leis fixas e instituições permanentes, com poderes intermediários e subordinados, ou seja, a monarquia, só pode funcionar se esses poderes intermediários orientarem sua ação pelo princípio da honra. A natureza da honra é pedir preferências e distinções. Encontra, através da nobreza (o poder moderador) seu lugar neste governo... É através da honra que os apetites

desenfreados da nobreza, bem como o particularismo de seus interesses se traduzem em um bem público, pois fream o poder do monarca, evitando o despotismo. Só a virtude é uma paixão propriamente política: ela nada mais é do que o espírito cívico, a supremacia do bem público sobre os interesses particulares. É por isso que a virtude é o princípio da república. Onde não há leis fixas nem poderes intermediários, onde não há poder que contrarie o poder como a nobreza contraria a o rei (e este à nobreza) – somente a prevalência do interesse público poderia moderar o poder e impedir a anarquia ou o despotismo (eternamente à espreita dos regimes populares). Não esquecemos que, para Montesquieu, república e despotismo são iguais num ponto essencial – pois em ambos os governos todos são iguais. A diferença é que nos regimes populares o povo é tudo, e no despotismo, nada é. O despotismo é menos que um regime, não possui instituições, é impolítico. É um governo cuja natureza é não ter princípio. No governo republicano o regime depende dos homens, e trata-se de um regime muito frágil, porque repousa em suas virtudes. Mais ainda, as circunstâncias – essas “relações que derivam da natureza das coisas” – podem fragilizar ainda mais o sistema. O comércio, os costumes, o gosto pelas riquezas, o tamanho do país e da população – tudo o que contribui para diversificar o povo e aumentar a distância cultural e de interesses entre suas classes, conspira contra a prevalência do bem público. A monarquia não precisa da virtude, e mesmo as paixões desonestas da nobreza a favorecem. Ela apenas repousa em instituições. Em resumo: o despotismo é o governo da paixão, a républica é o governo dos homens e a monarquia é o governo das instituições. O despotismo está condenado à autofagia: à desagregação ou às rebeliões. A república não tem princípio de moderação: depende de que os homens virtuosos contenham seu apetite (suas paixões) e contenham os demais. Na monarquia, são as instituições que contêm os impulsos da autoridade executiva e os apetites da dos poderes intermediários. Na monarquia, em outras palavras, o poder está dividido e, portanto, o poder contraria o poder. Essa capacidade de conter o poder, que só outro poder possui, é a chave da moderação dos governos monárquicos.

Para Montesquieu a república é o regime de um passado em que pequenos grupos de homem estavam moderados pela própria natureza das coisas: certa igualdade de riquezas e de costumes ditada pela escassez. Com o desenvolvimento ela se torna inviável: numa sociedade dividida em classes a virtude cívica não prospera. O despotismo seria a ameaça do futuro, já que as monarquias européias aboliam privilégios da nobreza. Apenas o governo das instituições (monarquia) seria o governo do presente. Porém, Montesquieu não defendia a simples restauração dos privilégios nobiliárquicos. Tratava-se, portanto, de uma busca a algo que, como a nobreza, pudesse conferir estabilidade à monarquia. Com isso em mente, Montesquieu cria a teoria dos três poderes, que pode ser interpretada através de mais de uma perspectiva. Em sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida como a separação dos poderes ou a eqüipotência. De acordo com essa versão, Montesquieu estabeleceria, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a interdependência entre eles. A idéia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder. Porém, Montesquieu ressalta não só a interpenetração das funções - o que leva a concluir que a separação total não é conveniente - como também refuta a equivalência dos poderes, afirmando que o judiciário é um poder nulo (“os juízes são a boca que pronuncia as palavras da lei”). Montesquieu mostra claramente que há uma imbricação de funções e uma interdependência entre o executivo, o legislativo e o judiciário. Trata-se, dentro dessa ordem de idéias, de assegurar a existência de um poder que seja capaz de contrariar outro poder, de encontrar uma instância independente capaz de moderar o poder do executivo. É um problema político de correlação de forças, e não um problema jurídicoadministrativo de organização de funções.

Para que haja moderação é preciso que a instância moderadora (os “freios e contrapesos” da teoria liberal da separação dos poderes) encontre sua força política em outra base social. Montesquieu considera a existência de duas fontes de poder político: o rei, cuja potência provém da nobreza, e o povo. É preciso que a classe nobre, de um lado, e a classe popular (na época a burguesia), tenham poderes independentes e capazes de se contrapor. Ou seja, a estabilidade do regime ideal está em que a correlação entre as forças reais da sociedade também possa se expressar nas instituições políticas. Seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse (e, portanto, moderasse) o poder das demais. Lida dessa forma, a teoria dos poderes de Montesquieu se torna vertiginosamente contemporânea. Ela se inscreve na linha direta das teorias democráticas que apontam a necessidade de arranjos institucionais que impeçam que alguma forma política possa a priori prevalecer sobre as demais, reservando-se a capacidade de alterar as regras depois de jogado o jogo político.

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...difesa delle regole dei gioco. Revisão: Sônia Maria de Amorim Beatriz Siqueira Abrão Composição: Intertexto CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Bobbio, Norberto B637f O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo /Norberto Bobbio; tradução de Marco Aurélio Nogueira. — Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. (Pensamento crítico, 63) Tradução de: Il futuro delia democrazia. Una difesa delle regole dei gioco. Bibliografia. 1. Democracia. I. Titulo. II, Série. 86-377 CDD — 321.4 CDU — 321.7 Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA Rua do Triunfo, 177 - 01212 - São Paulo/SP - Tel. (011) 225-6522 Rua São José, 90 -11° andar - 20010 - Rio de Janeiro/RJ Tel. (021) 221-4066 que se reserva a propriedade desta tradução 1997 Impresso no Brasil/Printed in Brasil Nota do digitalizador Página intencionalmente deixada em branco para que esta versão digital do livro tenha o mesmo número de páginas da versão impressa. Diversas páginas foram assim deixadas para, juntamente com a formatação das páginas, o texto nesta versão digital estivesse o mais próximo possível da versão impressa. Da capa do livro: O Futuro da Democracia não é um livro de gabinete, pura e simplesmente acadêmico. Os ensaios nele reunidos, escritos para servir ao público que se interessa por política, são textos de combate, desejosos de desfazer equívocos — como o que opõe a democracia...

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