Relatório Final Para O Projecto “Novas Poéticas de Resistência”
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RELATÓRIO FINAL
Projecto de Investigação:
“As novas poéticas da resistência – o século XXI em Portugal”
Relatório final para o Projecto “Novas Poéticas de Resistência”
Sub-Projecto:
“O exílio, a obra e a imigração - As três vertentes da resistência na obra de Fernando Lemos”
Responsável: José Manuel Bernar Borges Lourenço (Doutorando na Universidade de Coimbra no projecto transdisciplinar “Linguagens, Identidades e Mundialização” desde 2005).
Relatório: Janeiro de 2011
At the zero of streets and of windows
An arm in geometry[1]
RELATÓRIO FINAL
TEMA: A política, o exílio e a imigração na obra de Fernando Lemos
JOSÉ MANUEL LOURENÇO
“OS POETAS E OS OUTROS FAZEM-SE ENCONTRADOS APENAS NO DESEJO DE ACERTAR A LINGUAGEM. NEM SEMPRE CONSEGUEM. NENHUM DELES QUER CAMINHAR DE COSTAS. OS POETAS ESCREVEM DA ESQUERDA PARA A DIREITA. QUANDO OS OUTROS LÊEM DA DIREITA PARA A ESQUERDA NÃO ENTENDEM O QUE O POETA LHES DIZ.” (LEMOS, CÁ & LÁ)
questões
RETRATONALIDADE PURA[2]
Confissão de moldura
foto traduzida à mão
Uma ave recém expulsa
abre-se macro paraíso
tapeçaria tempestades
A luz armazena pedras
em espaços arruinados
há séculos implorados
O vento suspira leve
seu humor catástrofe
Só a lua irresistível
em motivos religiosos
platinada vertiginosa
tem ritual de minúcia
Húmido grão sem raízes
rumor de esquecimento
vara pintura ao viés.
Assinalo alguns aspectos deste poema que imediatamente me remetem à obra de Fernando Lemos.
Confissão de moldura
foto traduzida à mão
Na primeira estrofe, composta por dois versos [confissão de moldura/ foto traduzida à mão] no primeiro verso (confissão de moldura) penso na palavra “confissão” como a negociação simultânea do poder do “eu”, na linguagem, com todos os outros poderes nela hierarquizados[3] e, logo de seguida a palavra “moldura” como espaço de “fronteira”[4] associado à reflexão sobre a linguagem, que na linha de Bernstein, deve ser vista “não como acompanhando, mas antes constitutiva do mundo”, por outras palavras, a linguagem não segue o curso da realidade, antes a constrói[5]. Faço esta associação porque à limitação dos poderes estruturados na linguagem tenho de contrapor a abertura um processo de intervenção, de resistência e descentramento que questiona a transparência da linguagem ou a exigência que sobre ela se faz como médium finito de representação.
No segundo verso desta mesma estrofe (foto traduzida à mão) penso no gesto como criação de novos sentidos, na linguagem, a criação de novas camadas de sentido, igualmente apoiando-me no trabalho de Bernstein e da Language School [6]. De acordo com essa escola o que ocupa uma posição central neste problema pode se colocado através da seguinte questão geral: que leitura da poética podemos formular a partir do momento em que o “eu” seja deslocado do “centro” e que a “experiencia da linguagem” ocupe o seu lugar?. É no âmbito deste “experimentalismo de descentramento”, também e sempre como resistência, que “traduzo a foto à mão”.
Uma ave recém expulsa
abre-se macro paraíso
tapeçaria tempestades
A (Uma ave recém expulsa) no verso que abre a segunda estrofe remete-me á trajectória do poeta que opta por sair de Portugal e afirmar-se, mais tarde, como artista no Brasil. Esta trajectória é crucial no percurso do artista que, no dinamismo da sua obra representa as duas realidades sociais, políticas e económicas diferentes, e que apesar da diversidade cultural, consegue fazê-las interagir numa diversidade de formas de expressão. Esta questão leva-me a pensar no “processo de construção da identidade poética associada ao processo criativo, e ao posicionamento do criador perante a multiplicidade de identidades poéticas”[7], e ao “dinamismo da forma” que incute às suas obras, e em que são importantes as reflexões do sociólogo Boaventura de Sousa Santos sobre a “Hermenêutica Diatópica”[8] em sentido estético, e a “Grand Collage”[9] de Robert Duncan, pelo potencial de abertura que nos traz em termos de democratização das hierarquias do discurso: não existem saberes privilegiados, mas antes, passam a ser pensados de igual relevância, assinalando-se o carácter fragmentário de cada um deles.
Abrindo-se no (macro paraíso), o segundo verso da segunda estrofe - que lembra o Brasil, na extensão dos seus problemas económicos e sociais, e que pode ser comparado a uma (tapeçaria de tempestades) no verso que fecha a segunda estrofe, associo-lhes a questão da identidade histórica e de relação entre Portugal e o Brasil, com todas as ambiguidades e ambivalências que implicam, obviamente, a tensão entre a história dos dois países, e que levam à desconstrução de um discurso de “retórica de irmandade” e de tudo o que nisso está envolvido[10]. (passou ao ponto I do relatório).
Penso ainda num texto de Bernstein sugere que a sua poética explora as possibilidades de criação de uma polis alternativa:
Contra a ideia romântica de poema como veículo, eu prefiro imaginar poemas como espacializações e interiorizações – projectos de um mundo perto do qual eu vivo, mas que tenho ainda que ocupar completamente. Construindo espaços impossíveis nos quais vaguear, perturbados pelas necessidades contingentes da durabilidade, os poemas e os livros dos quais fazem eclipses extáticos, no desejo insaciável de habitarem as pregas e as dobras da linguagem.[11]
A luz armazena pedras
em espaços arruinados
há séculos implorados
Ao ler os três versos da terceira estrofe (A luz armazena pedras /em espaços arruinados /há séculos implorados) associo a exposição “à sombra da Luz/ a luz da sombra”, realizada entre 03 de Julho e 22 de Agosto de 2004, na Pinacoteca do Estado. Esta questão, que se configura no título desta exposição - “a luz com letra maiúscula” e a “luz com letra minúscula”. A escrita da palavra LUZ, ora com letra maiúscula, ora com letra minúscula traz consigo a relação entre o poético e o político e remete-me, a esse propósito, para “Os dois corpos do Rei” de Kantorowics[12].
Penso também na conflitualidade do poeta, entre o desejo de assimilação e de resistência[13] e na necessidade da partilha da linguagem na resistência ao que é convencional, em que a ruptura do texto, e a divergência da linguagem poética, daquela do discurso oficial, representa, por parte dos Language, uma acção política e ética[14], ou seja, a ruptura do texto é um passo necessário na tentativa de dispersar a tirania do “eu” [e do “eu” como o outro] e assim abrir-se à incerteza epistemológica à indeterminação linguística e epistemológica tão importante para a criação de novas formas de ver e pensar o mundo.
O vento suspira leve
seu humor catástrofe
No primeiro verso da terceira estrofe (O vento suspira suave) sinto a “respiração” e a “voz” do “primeiro forjar” de uma nova abertura na linguagem[15].
O segundo verso desta estrofe (seu humor catástrofe) transporta-me para o erro como estratégia de indeterminação, que abre o caminho à expansão e à intervenção política, para a configuração de uma política da linguagem avessa à conformidade, com todas as possibilidades que isso representa[16]. Michael Palmer, por exemplo, numa linha muito próxima à de Bernstein, diz-nos que os seus trabalhos de avaliação de uma epistemologia poética contêm também uma natureza política: “estou muito consciente do papel que a poesia pode representar como resistência e como crítica em relação ao discurso do poder minando suposições sobre o significado e univocidade.”[17] Na mesma linha e citando Riffaterre, Michael Palmer estabelece, de forma clara, uma ligação entre o erro ou a não-gramaticalidade e a problematização da dicotomia sujeito-objecto da poética tradicional:
“Riffaterre observa que ‘a arbitrariedade das convenções da linguagem parece diminuir mais eficazmente à medida que o texto se vai tornando mais desviante e não-gramatical, do que de outro modo qualquer.’ A poesia assemelha-se muitas vezes a uma conversa, tanto com o “eu” como com o “outro”, e com o “eu” como se fosse o “outro”, uma simultaneidade onde se reconhece a multiplicidade indescritível do que é chamado identidade.”[18]
[Só a lua irresistível]
em motivos religiosos
platinada vertiginosa
tem ritual de minúcia
Húmido grão sem raízes
rumor de esquecimento
vara pintura ao viés.
Na quarta e última estrofe visualizo a criação como processo contínuo, fora de controlo [húmido grão sem raízes], relacionando a “objectividade fantasma”[19], a malformação, o gaguejar, e o “disrafismo” que se podem “traduzir” em algo criativo e inovador[20]. O “actínico” e o “mético” associados ao poético, como força criativa incontrolável[21]. Por último, e ainda sobre a questão da forma e da materialidade, outra referência a Palmer que dá muita atenção ao erro, como forma de errância ou nomadismo no texto e, sugere que há uma relação estreita entre o erro, como estratégia de composição e indeterminação sintáctica do seu trabalho:
“Robert Duncan e eu conversamos um bom bocado sobre a melhor maneira de lidar com isto – uma confiança numa espécie de errância que é também um errar, fazer erros, e um nomadismo ao mesmo tempo, através das passagens – nesta floresta negra que é o poema. Encontrar o nosso caminho através disso sem um mapa à nossa frente, para ver que informação específica se manifesta a partir das palavras, elas mesmas.”[22]
Isto conduz-nos directamente à atenção da Language School dá à materialidade do significador. A conceptualização do erro ajuda a compreender a estética da indeterminação[23] associada à escrita Language.
----------------------- [1] PALMER, Michael – “At Passages (1995) In. PALMER & BONVICINO; Régis, Michael. Candenciando-Um-Ning, Um Samba, Para o Outro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001 [2] Lemos, Fernando. O Quadrado Visualterado. São Paulo: Empório Cultural. 1991. (p.10)
[3] CAPINHA, Graça (coordenadora) e KEATING, Clara. Emigração E Identidade. Coimbra: Centro de Estudos Sociais - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1997.
[4] SANTOS, Boaventura de Sousa. "Identidade, Modernidade E Cultura De Fronteira", Número Temático Da Revista Crítica De Ciências Sociais. Coimbra, 1993.
[5] BERNSTEIN, Charles. “Thought´s Measure”, in Content's Dream: Essays 1975-1984 (Avant-Garde & Modernism Studies) (Paperback). Reprint edition ed. New York: Northwestern University Press,U.S., 2001. Reprint, (31 Mar 2001), pp 61-86 (p. 62).
[6] BERNSTEIN, Charles. Content's Dream: Essays 1975-1984 (Avant-Garde & Modernism Studies). Reprint edition ed. New York: Northwestern University Press, U.S., 2001. Reprint, (31 Mar 2001).
[7] CAPINHA, Graça ; BIANCO, Bela Feldman. Identidades, Número Temático Da Revista Crítica De Ciências Sociais. Vol. 48. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1997.
[8] SANTOS, Boaventura de Sousa. Modernidade, Identidade E a Cultura De Fronteira. Vol. 38. Coimbra: CES, 1993.
[9] DUNCAN, Robert. Fictive Certainties. New York: New Directions, 1985.
[10] CAPINHA, Graça ; BIANCO, Bela Feldman. Identidades, Número Temático Da Revista Crítica De Ciências Sociais. Vol. 48. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1997.
[11] BERNSTEIN, Charles. “The Book as Architecture”, in My Way: Speeches and Poems. Chicago: The University of Chicago Press, 1999, pp 56-7 (p. 57).
[12] KANTOROWICZ, Ernst H. The King’s Two Bodies - A Study in Mediaeval Political Theology. New Jersey: Princeton University Press, 1997.
[13] CAPINHA, Graça (coordenadora) e KEATING, Clara. Emigração E Identidade. Coimbra: Centro de Estudos Sociais - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1997.
[14] BERNSTEIN, Charles. My Way Speeches and Poems. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.
[15] BERNSTEIN, Charles. My Way Speeches and Poems. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.
[16] BERNSTEIN, Charles. Content's Dream: Essays 1975-1984 (Avant-Garde & Modernism Studies. Reprint edition ed.
New York: Northwestern University Press, U.S., 2001. Reprint, (31 Mar 2001).
[17] PALMER, Michael. “Interview: Conducted by Keith Tuma”, in Contemporary Literature, 30.1. Spring. 1989, 1-12 (p.6)
[18] PALMER, Michael. “Autobiography, Memory and Mechanisms of Concealment” in The Promises of Glass New York: W. W.
Norton & Co. , 2001. p. 227
[19] TAUSSIG, Michael T. Mimesis and Alterity: A Particular Study of the Senses (Paperback). New York: Routledge, Chapman and Hall, Inc., 1993.
[20] BERNSTEIN, Charles. My Way Speeches and Poems. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.
[21] CAPINHA, Graça; RAMALHO, Maria Irene. Os Poetas e O Social - Número Temático Da Revista Crítica De Ciências Sociais. Vol.
47. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1997.
[22] PALMER, Michael. “Interview” in Thomas Gardner’s Regions of Unlikeness: Explaining Contemporary Poetry. Lincoln: University of Nebraska Press, 1999, pp 272 – 291 (p. 272).
[23] Relativamente ao último verso desta última estrofe podia ainda pensar a interrelação de saberes a partir de uma rede conceptual que lhes criou o espaço de existência e da sua articulação com a estrutura social seguindo os trabalhos de Michel Foucault de 1966 e 1969, respectivamente “As Palavras e as Coisas” e a “Arqueologia dos saberes”.